quinta-feira, 5 de setembro de 2013

das mudanças que a maternidade me trouxe: a leoa assumiu a juba

  eu tinha 7 anos e a professora reuniu todos os alunos depois da educação física pra uma conversa livre. fez algumas perguntas e pediu que cada um as respondesse, e uma delas foi: "o que você mais gosta em você? o que tem de mais bonito?". toda orgulhosa, respondi: "meu cabelo! meu cabelo é lindo". ela riu. não sorriu, não, ela gargalhou. os alunos começaram a gargalhar junto, acredito eu que em sua maioria sem saber o por que, só seguindo a professora. depois de muito rir, ela disse: "mas esse cabelo aí? se fosse igual o da kelly eu entenderia, mas o seu?" e riu mais um pouco.
  a kelly tinha os cabelos lisos e loiros. os meus cabelos eram castanhos, cacheados e volumosos.
meus cachinhos e eu
 
 eu estudava em uma escola particular renomada na região. não comentei com ninguém o que havia acontecido, afinal sempre que questionava alguma coisa era obrigada a rezar na capela na companhia de alguma freira.
 comecei a reparar os cabelos das minhas colegas de sala. pra começar não tinha nenhuma negra, ninguém com o cabelo crespo. cabelo cacheado e cheio, era só o meu. as outras alunas tinham os cabelos bem parecidos - loiros, castanhos, bem pretinhos -, mas sempre lisos. um menino da turma era negro e provavelmente teria o cabelo crespo, mas usava a cabeça raspada.
  decidi que queria fazer franja, ser igual a todas aquelas meninas. quem sabe assim meu cabelo seria bonito? uma tia cortou minha franja e, óbvio, nem de longe fiquei parecida com as coleguinhas. a franja encolheu, se escondeu amontoada na cabeleira longa e cacheada. me senti horrorosa, tinha vergonha que as pessoas me vissem. então peguei alguns bonés da coleção do meu pai e era assim que saía, pra onde quer que eu fosse: o boné escondendo os cabelos que outrora achava tão lindos.
  passei a sonhar com o dia que teria 15 anos: seria alta, magra, cabelos lisos e loiros, olhos verdes e me chamaria Adriane (bjs, prima!). assim, num passe de mágica, eu seria completamente diferente do que eu era, seria uma cópia da barbie misturada com as minhas colegas da escola e com a minha prima adolescente que eu sempre achei tão linda. os 15 anos chegaram e eu odiava meu corpo, meu cabelo, minhas feições, minha voz, meu jeito.
  e falando na adolescência não posso deixar de dizer que as minhas amigas mais próximas tinham o cabelo escorridinho, "controlado". o meu definiu ainda mais os cachos, era "rebelde". a primeira vez que passei prancha (chapinha) no cabelo, lembro de fechar os olhos no salão e pedir: "meu deus, que fique pelo menos igual o da Laila, um liso ondulado já me deixaria feliz."
  comecei a modificar meu cabelo com frequência: pintar, escovar, pranchar, alisar, passar química, progressiva, o que viesse. já foi de vários tamanhos, cortes e cores, mas uma coisa permanecia igual: eles ficavam lisos. muita gente nem sabia que na verdade meu cabelo era cacheado (e eu preferia assim).

  então eu engravidei. e aí não podia mais alisar meu cabelo com química. comecei uma guerra com a escova e a chapinha - morria de cansaço e preguiça, mas me sentia feia e nada atraente com o cabelo ao "natural".
  o Carlos tem os cabelos bem cacheadinhos e costumava usá-los compridos. sempre achei lindo. mas durante a gestação ouvimos mil piadinhas do tipo "tomara que a bebê não puxe os cabelos do pai". ficava irritada e entristecida e não sabia lidar com isso. não queria que minha filha sofresse o que eu sofri por causa dos cabelos (ou por qualquer outro padrão estético absurdo). queria que ela se aceitasse e se amasse em cada particularidade, sem tentar corresponder à esse modelo eurocentrista de ser branca-magra-cabelos lisos e loiros. mas como a influenciaria e apoiaria na construção da sua autoestima se eu não conseguia sentir nada disso por mim mesma?

  acredito que o exemplo é o melhor professor. e fui tratar de cuidar das minhas feridas antigas pra conseguir ajudar a Mallu a não sofrer dos mesmos males. fui atrás de me aceitar, de me AMAR. me apaixonei (aos poucos, a passos curtos) por tudo aquilo que um dia eu odiei.
  o primeiro passo foi aceitar o corpo pós-parto, ainda vou escrever sobre isso aqui. depois foi aceitar o meu cabelo, aquele tão mal-falado e rejeitado desde a infância. num dia de muito choro e muita crise pessoal, minha irmã foi me cuidar na minha casa e decidi: é hoje. vou tirar uma das amarras que carrego há tanto tempo.
  o meu cabelo estava longo, vivia liso, recebia muitos elogios.
  e aí eu cortei. de uma vez aceitei os cachos que haviam crescido durante a gravidez e a amamentação onde não usei/uso química, e pra isso tive que aceitar o cabelo curto e tirar a "feminilidade" instantânea que o cabelo longo traz. tomei pra mim a "rebeldia" dos cabelos e saí do padrão que me guiou a vida inteira.





  o resultado? uma autoestima mais forte e elevada, orgulho de aceitar uma parte do que eu sou com tanto amor, respeito por tantas e tantos de nós que sofremos opressão pela cor da pele, o crespo/cacheado dos cabelos, os traços que nem de longe lembram os europeus.


  lá em casa celebramos todos os cachinhos da família. e quero ser a referência de beleza de cacheados que a Mallu vai ter pra construir sua autoimagem e autoestima, já que não vamos na televisão, nas revistas ou até no dia-a-dia mulheres que aceitam a cabeleira e reconhecem a beleza que ela tem.

o primeiro cachinho da Mallu :)

  repito sempre: viver é um ato político.
 

4 comentários:

Unknown disse...

Amo cabelos curtos, não acho que sou menos feminina por causa deles, kkkk, ando me sentindo mais bela com meu cachos, com a ajuda do Marcos, que ve linda assim ao natural, e também curte os meu cachos, e isso melhora a minha estima em 100%

beatnik_queen disse...

Nossa, meu cabelo é meio "nem là nem cá", sempre quis ter cabelos beeeem cacheados, ainda mais assim curtinho à la Maria Flor, acho lindérrimo !

tony disse...

Excelentete e comovente texto, gostei muito, essa fase de sua infância me lembrou muito a minha infância, que teve dolorosos momentos onde sofri calado e tive que me virar para sair de situações constrangedoras demais para uma criança, mas no meu caso eu sofria e apanhava por ser gordo, e isso me trouxe prejuízos e complexos comigo que se refletem até os dias de hoje no meu comportamento recluso e a forma negativa que me deprecio, bom, cheguei até este blog através do facebook em uma postagem sobre paquitas e os padrões de beleza que representavam, parabéns.

Unknown disse...

vc me fez relembrar a minha infância....branca, pobre, cabelos crespos, vivendo em um lugar onde todas as crianças ao meu redor tinham uma vida soial melhor que a minha. Sofri muito, mas já na adolescência fui encarando a vida como ela é, e sempre com sorriso largo no rosto fiz muitos amigos que me amavam de verdade, alguns convivo até hj, e hj tenho 57 anos sou uma mulher, mãe e ser humano realizada, mas, mas, mas, meus tres filhos tem cabelo crespo como o meu hahahahahaha